Bem- Vindo

Bem- Vindo
Queria tanto ser poeta, falar do mundo, do amor... Porque não da dor? Do sofrimento... Da injustiça então... Enfim, falar do meu sentimento

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A reunião


Sucedia ter uma reunião às nove horas, na Quinta Grande em Alfragide. Amadora

Era uma segunda-feira, chovia já á uns dias e o instituto de meteorologia, previa a continuação da precipitação.

Como me deslocava da Margem Sul, receei o trânsito usualmente intenso e particularmente caótico nos dias de chuva na ponte vinte cinco de abril. Na noite prévia á reunião, dei ordem ao radiodespertador e ao telemóvel, “não fosse acontecer um deles se esquecer” para despertarem às seis horas e trinta minutos. Despertaram ambos. Os tipos da meteorologia, também estavam de parabéns, acertaram, a chuva acompanhou-me em todo o percurso.

Cheguei cedo, como calculado, eram sete horas e vinte cinco minutos. Tinha portanto um excedente de uma hora e trinta e cinco minutos. É este o preço a pagar por quem mora nos arredores de Lisboa, ou chega cedo, escolhe uma a duas horas no trafego, ou aparece atrasado. Eu escolho sempre a primeira forma. Sou prosélito da pontualidade, acredito que além de ser uma qualidade a ser estimada, é um acessório de respeito para com o outro.

Era do meu conhecimento haver uma pastelaria a três quarteirões do local da reunião. Dirigi-me para lá, a fim de tomar a minha primeira refeição do dia. Enquanto isso, ocupava algum tempo até ao que me havia levado ali.

A pastelaria era agradável, acolhedora, portas de correr com sensor, o ar-condicionado proporcionava um ambiente simpático. O balcão corrido, bem agasalhado de bolos e salgados deitava um convite guloso aos clientes. As mesas achavam-se graciosamente dispostas pelo espaço. Escolhi uma próxima do televisor suspenso na parede e sentei-me de forma a ver as noticias que difundia. Ver via, mas não ouvia, estava sem som. Os tipos elegeram tirar o som á televisão e presentear-nos com uma música de fundo de uma rádio qualquer, que saltava do teto, mas o volume estava tão baixo que fazia dor de cabeça tentar perceber o que se comunicava, ou a música que enviava.

Inferiormente no lado direito existia uma janela rasgada, que facilitava o espreitar a rua. Escolhi a janela e pus-me a contemplar a chuva miúda que caía.

Um sujeito de bigode le moustache, de camisa branca, laço preto e avental também ele preto, com o nome da pastelaria inscrito, acercou-se de mim. Não revelo o nome da pastelaria, unicamente por vindictas, obrigaram-me a pagar o pequeno-almoço. “Bom dia, que vai desejar?” Perguntou. “Bom dia, um abatanado e um jesuíta, por favor” solicitei. Além de adoçar o dia e ser um bolo de que gosto muito, estavam com um ótimo especto, aliás, como tudo na montra. O senhor retirou-se a cofiar o bigode para satisfazer o pedido.

Estava a segurar já na segunda metade do bolo, quando surge uma mulher na mesa ao lado. “Bom dia” cumprimentou. Tira a jaqueta de xadrez marron, em feltro de lã, pendura-o na cadeira e senta-se. “Bom dia”. Respondi a meias com uma dentada, principiando a ficar vaidoso. A casa era enorme, dezenas de mesas espraiadas por ela, estava habitada apenas por dois clientes e sentou-se logo a meu lado? Olhei-a de soslaio. Cerca de trinta anos. Cabelos castanhos, brilhantes, longos, que tombavam em suaves canudos nas costas. Camisola de gola alta creme, calças de ganga por dentro das botas de cano alto do mesmo tom do casaco.

Não era alta nem baixa, mais magra que gorda, não era feia, mas também não era bonita, não se visualizava pinturas, trazia um rosto normal como tantos outros.

Surgiu arrastadamente o bigodes. O mesmo cumprimento, a pergunta repetida milhares de vezes, a voz monocórdica. “Bom dia, que vai desejar?” – “Bom dia” respondeu com voz fresca a senhora. “Um chá Lúcia Lima e meia torrada se faz favor.” – “Com certeza,” anui e vai materializar o pedido. Ela levantou a cabeça e olhou o televisor. Experimentou o mesmo que eu, porque notei que fazia um esforço para tentar ouvir. Não ouvia, mas não se deu por vencida e continuou a olhar, olhava, mas não com um olhar qualquer, olhava como uma entendia, como uma perita de mimica e linguagem gestual. Ficou ali, a olhar, parecia perceber tudo. O funcionário de bigodes chegou e com ele o chá e a meia torrada, soltando aquele agradável cheirinho tão característico a pão torrado. Assentou na mesa, “bom apetite” disse, e voltou-se aos seus afazeres.

Ela segurou na pega do bule e deita um pouco do conteúdo fumegante na chávena, adoça apenas com metade do pacote de açúcar. Delicadamente, com dois dedos envolve num guardanapo uma fatia do pão torrado, dá uma pequena trinca e volta-se novamente a mastigar suavemente para a sua aula de mimica.

Entretanto a minha vaidade inicial começa a esvaecer-se. Se, se tinha sentado ali por minha causa, por que motivo não olhava para mim? Qual o fundamento que em vez de olhar para mim via a televisão? Ainda mais que não se ouvia nada. Fiquei preocupado, preocupado comigo mesmo. Como é que iria justificar a indiferença dela á minha imodéstia, á minha vaidade? Senti um rubor subir á face, talvez de ira e envergonhado, ferido no ego, por ter sido preterido á televisão, começo a vê-la com outros olhos.

A minha conjetura é interrompida pelo toque do telemóvel dela. O toque do telemóvel é horrível. “Estou?” Atente a mulher. Ouvi uma voz roufenha, antipática, desengraçada. Sentia-me escorraçado, ressentido, tudo o que a mulher dizia ou fazia a partir daqui me parecia assimétrico. A forma delicada que havia pegado no bule parecia-me agora deselegante. O segurar distinto no pão com os dois dedos, parecia-me agora ser preso por duas tenazes. O mastigar aprimorado de antes, parecia-me ser agora uma trituradora. O olhar entendido para a televisão, parecia agora, uns olhos esbugalhados de uma demente.

Após uns minutos ao telemóvel, ouvi. “Até logo querida, beijinho.” Desligou. Olhou para mim e perguntou: “Desculpe, por acaso não tem uma esferográfica que me empreste?” Na minha análise vingativa, continuava a parecer-me feíssima. Os olhos não tinham cor, o nariz parecia a de um pugilista, achatado e largo, a boca desmaiada, de lábios em linha, sem a graciosidade do esboço, das nuances curvilíneas. Apeteceu-me dizer para ir comprar uma, mas, considerei, senti até pena de lhe estar a fazer um julgamento pessoal tão mau e para me redimir tirei uma caneta do blêizer e com esforço em fazer uma voz amiga disse: “Faça favor”. Entreguei-lha. Ela olhou-a em aprovação. Era uma Parker dourada, brilhava de nova e pôs-se a escrevinhar uns papéis.

Findos vinte minutos, ela continuava na escrita, esquecida completamente da minha existência. O que me azedava mais e mentalmente libertava impropérios, por ter-lhe emprestado a caneta. Ora escrevia, ora olhava para a televisão pensativa, parecia estar a traduzir para o papel, o que era dito na televisão em mimica.

A hora aproximava-se, a reunião teria lugar nos próximos quinze minutos, não gosto de chegar atrasado, por isso cheguei hora e meia mais cedo, não seria agora que me ia atrasar, mas como lhe iria dizer? Ela não via ninguém, nem parecia estar no mesmo local que eu. Furioso, mas, tentando não mostrar no tom de voz disse: “desculpe interromper, mas, estou a precisar de ir embora…”

“Sério? Então e o que o impede?” Disse ela com ar muito sério e o mais ingénuo do mundo. Fiquei atónito. “Esta mulher é louca.” Pensei comigo. “Ou é louca ou está a gracejar.” – “Ou será que me está a estender um convite enviesado?” Continuou ela com um sorriso de prazer, a roçar o gozo. Não suportei mais, levantei-me, arranquei com força a caneta das mãos dela e disse encolerizado: “ és feia de mais para saíres comigo.” E saí, aliviado, com a impressão de vingança alcançada e fui á reunião.

 

Luís Paulo