Bem- Vindo

Bem- Vindo
Queria tanto ser poeta, falar do mundo, do amor... Porque não da dor? Do sofrimento... Da injustiça então... Enfim, falar do meu sentimento

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O filho do Homem


Estava uma tarde fria. Após uma manhã encantadora de estival, a temperatura havia caído rapidamente, fleumática, insensível. A chuva iniciava a abater-se, gelada, copiosa, miúda, mas firme e teimosa

Eram três horas e cinquenta minutos, a tarde ainda jovem, achava-se escura, o céu apresentava-se de piche assustador, como algo terrível, ameaçador, que agravava o espírito do caído… do sofredor. Ao longe, o horizonte tentava ser conciliador, amnistiava com o arco-íris o dia sombrio, numa majestade de cor.

As ruas ficaram desertas. Todos se esconderam, procuraram um lugar seguro, recolheram a um abrigo, a fugir á tormenta que se avizinhava. A brisa robusta soprava mais enérgica, hostil, agressiva. Os fortes ventos, a pluviosidade e o granizo, não adivinhava nada de bom, era característico dum temporal severo. Éolo, Deus dos Ventos e Tempestades, incitava Hélio, a uma luta… a uma guerra.

Os Deuses manifestavam a sua fúria. Os elementos em revolta brandiam ao som dos trovões. O arco-íris afastava-se, desaparecia. A chuva abatia-se agora torrencial. Varria tudo o que encontrava á frente, lavando as ruas do carcoma, limpando a perversão, lambendo todo o mal. A ventosidade excessiva amplia de intensidade e rapidez, ventos convocados, comparecem dos quatro cantos, unem-se, acasalam-se, parindo o caos.

Um homem surge, no final da rua extensa, avança com dificuldade sob o óbice da vasta flatulência. Com o braço esquerdo estendido, agarra feroz a ilharga do gabão, que tenta fazer de cobertura, mas mostra-se estéril a proteção.

Tal Diógenes, o homem abraça a completa miséria. Andrajoso, cansado da luta titânica, encharcado até aos ossos, entra no bar para se abrigar… descansar.

“ Boa tarde senhores”. Cumprimenta. Embora de idade avançada e de semblante cansado, a voz saiu forte, nítida, pausada, detentora de boa dicção.

Todos se voltaram, espantados perante tal visão. Alto, sulcos profundos á volta dos olhos pretos, cansados, mas de olhar grave, com vivacidade e determinação. Tez morena, cabelos compridos ebúrneos, barba também ela alva que agasalhava todo o pescoço. Rosto pensativo de um filósofo. Os cabelos e barba estavam lisos, colados á pele pela água da chuva que escorria por eles em bica, o capote gasto, sem cor, pingava fortemente formando um pequeno charco á sua volta.

Diante da vasta miséria, o comerciante, homem gordo, baixo, barriga proeminente, olhos de fuinha, cara abolachada, sanguínea, nariz adunco, bigode farfalhudo que lhe cobria a boca, mãos grossas, peludas, não visualizando ali nenhum lucro, olhou-o de viés e disse de forma agressiva, “O senhor está a sujar-me o estabelecimento e a incomodar os clientes. Por favor queira retirar-se”. Disse, apontando a rua.

O senhor idoso, totalmente aspergido e de aragem necessitada, mas de cariz nobre, porte decidido, postura reta, atitude educada e os seus modos ensinados respeitosamente, perguntou: “ não me autoriza por favor, que me demore aqui um pouco, para me abrigar desta tormenta?”

“Agradecia que saísse e não impedisse a passagem”. Repetiu inflexível o comerciante.

O homem, imperturbável, olhar sério, anuiu, “com certeza cavalheiro, retirar-me-ei de pronto”. Virou-se e dirigiu-se para a saída, a enfrentar o temporal.

Um cliente, que havia assistido a tudo indignou-se. “Como é possível esta insensatez?” Vociferou encolerizado. “Não é realizável o que o senhor acaba de fazer, não vê como chove? Não nota este vendaval?”

O senhor idoso disse: “ obrigado meu bom amigo, mas aquele senhor tem razão, estou a sujar todo o seu estabelecimento e a dificultar a passagem.” E abandonou o local abordando o flato.

O cliente investiu para fora, no encalço do homem andrajoso para o impedir daquela loucura, mas, ao chegar á rua, imobilizou-se assombrado, petrificado com o proscénio que presenciou.

Éolo colocava agora toda a sua força. O barulho era ensurdecedor. Havia todo o tipo de matéria no ar. Telhados amputados das casas, árvores derrubadas, janelas partidas, carros invertidos, contentores do lixo a voar… O vento… o trovejar que ecoava pelas ruas e que fazia estremecer todos os alicerces dos edifícios… as descargas elétricas, com seus raios tremeluzentes que clareava o dia escuro de branco azulado… mas, ao redor do homem, no meio daquele érebo, a calmaria, a quietude, o sossego, a paz era evidente, o homem idoso seguia robusto no meio da tempestade, sem que a intempérie o atingisse, era como se existisse um muro, uma muralha invisível que o protegia, uma Camada de Ozono em volta dele.

O cliente incrédulo ao que presenciava perguntou: “Quem é o senhor, que passa incólume a este furacão? Vai tudo pelos ares, e nós, no meio deste ciclone, nem uma brisa, uma pequena brisa experimentamos? Quem é você?”

“Meu bom amigo,” disse o idoso com um sorriso deferente “o senhor acabou mesmo de ver quem sou, um homem expulso, dispensável pela maioria. Mas como filho do Homem, posso adiantar-lhe que procuro homens de boa estirpe. Homens retos assim como o senhor.”

O cliente olha em volta ainda céptico. “Como é possível estar no meio desta borrasca e não sentir nada, nem um cabelo se mexe pelo vento, não sinto nada, é como se estivesse a ver um filme em três dimensões”. Quando olha de novo para o idoso, já não o encontra, tinha desaparecido, dissipou-se, esfumou-se como a bruma que aparece e desaparece, esvaeceu-se num ápice. Confuso, o rosto transtornado… “estarei com visões? Estarei louco? Pensava com nervosismo. Havia sido sempre ateu, sempre achara que essas coisas de Deus era para crianças na catequese, para as beatas, com sua ladainha de aves-marias,  mas agora… isto não era normal, existia qualquer coisa aqui, algo transcendente, metafisico, enigmático para o mero humano.

Desata a correr, entra no estabelecimento e grita com o proprietário: Imbecil, você expulsou Deus da sua casa, seu miserável.

 

Luís Paulo

 

 

 

Quadro Teatral: Fernando no Martinho

Eu a interpretar Fernando Pessoa
 
 
Eu com Ventura Picolé
 
Quadro Teatral: Fernado no Martinho
Pequenos enxertos da peça
Com Luis Paulo, Edna Aguilar, Joana Morais e Carolina Paias